Foi com alarde e entusiasmo que o Santuário Nacional de Aparecida, mais importante centro de peregrinação católica do Brasil, inaugurou em março de 2022 a fachada norte do templo, com um mosaico gigante retratando cenas bíblicas. Era a primeira fase de uma obra que prevê trabalhos semelhantes em todos os quatro lados da igreja dedicada à santa padroeira do Brasil.
Um ano depois, silêncio e constrangimento são a tônica da administração da basílica. E a própria continuidade do trabalho está comprometida.
Isto porque o idealizador da obra artística e coordenador geral da execução está formalmente sob investigação no Vaticano. Marko Ivan Rupnik, padre esloveno de 68 anos, considerado um dos maiores expoentes — para muitos, o maior e mais importante — da arte sacra contemporânea, é acusado de abusos sexuais, psicológicos e espirituais.
E a ordem religiosa à qual ele pertence, a Companhia de Jesus, impôs a ele a proibição de diversas atividades, inclusive trabalhos artísticos.
Até o momento, segundo fontes ouvidas pela reportagem, há denúncias de pelo menos 20 mulheres adultas — dentre elas, nove freiras — e pelo menos um homem, também adulto.
Conforme cronologia divulgada pela Companhia de Jesus, todos os casos teriam ocorrido entre 1980 e 2018. Até o momento, há relatos de delitos que teriam sido praticados tanto em seu país natal, Eslovênia, como na Itália, onde Rupnik vive desde 1991.
Nos últimos dias, a reportagem ouviu cinco pessoas próximas à Cúria Romana em busca de informações a respeito — todas elas pediram para ter suas identidades preservadas na reportagem.
A BBC News Brasil procurou o Centro Aletti, ateliê de arte espiritual fundado por Rupnik em 1995 e com o qual ele produz suas obras, solicitando uma entrevista com o religioso ou, pelo menos, um posicionamento por escrito da instituição. Não houve resposta.
Também questionada pela reportagem, a Companhia de Jesus ressaltou que "todas as informações podem ser encontradas [em notas] no site" oficial da ordem.
Silêncio e incertezas:
"Quanto às obras em Aparecida, há uma grande equipe de artistas envolvidos, não somente o padre Rupnik, e imagino que possam continuar sem a presença do padre Rupnik", escreveu à BBC News Brasil, por e-mail, o padre belga Johan Verschueren, delegado para as Casas e Obras Interprovinciais da Companhia de Jesus em Roma. Ele é o responsável, dentro da ordem, por coordenar as investigações internas a respeito do caso.
Existe uma série de problemas com relação a isso, na realidade. Primeiramente porque embora as obras monumentais de Rupnik em Aparecida sejam executadas por uma vasta equipe de artistas — na última fase que contou com o sacerdote no Brasil, no segundo semestre do ano passado, foram três meses de trabalho em que ele capitaneou um grupo de 39 mosaicistas —, tanto a concepção artística quanto a coordenação são do famoso padre-artista.
E ele está proibido pelos seus superiores de executar qualquer trabalho artístico. Por isso, nos bastidores, especula-se com mais dúvidas do que certezas sobre como seria a continuidade dos trabalhos nas demais fachadas do templo.
O outro problema é de ordem moral. Com 4 mil metros de mosaicos, a fachada já inaugurada de Aparecida é a maior obra realizada por Rupnik em todo o planeta, dentre as cerca de 200 de sua lavra.
Na totalidade, somando as quatro fachadas, o projeto seria ainda mais monumental.
Caso ele realmente seja considerado culpado, como ficaria ter a entrada do principal cartão-postal da fé no Brasil marcada com a arte de alguém formalmente condenado pela Igreja?
Oficialmente, ninguém sabe, ninguém diz. A reportagem solicitou entrevistas tanto com o arcebispo de Aparecida, Orlando Brande, quanto com o administrador do Santuário Nacional, padre Heliomarcos Ferraz. Duas negativas.
O único posicionamento, por escrito, foi uma nota lacônica da administração, ressaltando que a instituição "acompanha com atenção o caso e aguarda as orientações da Igreja para suas definições".
Depois da inauguração da fachada norte, no ano passado, o Santuário concentrou os esforços na etapa seguinte, a fachada sul.
"Após a fachada norte, as outras três fachadas da Basílica também serão revestidas com cenas bíblicas. Atualmente, a fachada sul do templo está sendo preparada para receber os mosaicos, que estão sendo produzidos em Roma pelos artistas do Centro Aletti", informou o Santuário, em nota divulgada em março do ano passado.
Andaimes e tapumes de obra indicam que o trabalho começou a ser feito logo em seguida. Entre agosto e outubro, Rupnik e um grupo de artistas estiveram em Aparecida executando essa segunda etapa.
Em reportagem publicada em agosto pelo A12, portal oficial de notícias do Santuário Nacional, a informação era de que a previsão de conclusão dessa segunda etapa que inclui a aplicação dos mosaicos e também as obras estruturais, seria no fim deste ano, 2023.
Questionada pela BBC News Brasil na última terça, a assessoria de imprensa da igreja de Aparecida agora informa que não há previsão de término da atual fase. No momento, a fachada sul permanece toda cercada, com obras de infraestrutura ocorrendo no entorno.
A reportagem apurou que a parte artística está praticamente concluída, com toda a fachada já coberta pelo mosaico desde outubro, quando a equipe do Centro Aletti retornou para a Itália, restando apenas o arremate do acambamento.
Delitos e inquisição:
O caso Rupnik veio à público no fim do ano, quando notícias a respeito começaram a ser publicadas pela mídia católica italiana.
De início, houve estranheza quanto à organização do caso dentro da complexidade dos escaninhos da estrutura do Vaticano.
Isto porque o sacerdote esloveno vem sendo investigado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, nome atual do organismo da Igreja antigamente conhecido como Inquisição.
Dentro da lógica eclesial, embasada pelo direito canônico, isto é uma peculiaridade. Porque casos disciplinares de religiosos, ou seja, descumprimento de votos como pobreza, obediência e castidade — como seria o caso de Rupnik —, costumam ser analisados e julgados por um órgão próprio para questões de batina, o Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.
À primeira vista, soou como uma tentativa de trazer a questão de Rupnik para uma ingerência mais próxima do papa, num entendimento de Francisco — o também jesuíta Jorge Bergoglio — poderia querer tentar suavizar ou mesmo proteger Rupnik.
Logo veio o esclarecimento: pelo menos uma das denúncias envolvia uma questão ligada à Doutrina da Fé, daí a atribuição à tal congregação.
A própria Companhia de Jesus esclarece, na cronologia que tornou pública, que em 2018 recebeu "acusações de absolvição de um cúmplice do padre Rupnik em um pecado contra o sexto mandamento".
No caso, é a regra de "não pecar contra a castidade". O religioso teria, em confissão, absolvido uma mulher que teve relações sexuais com ele -- ou seja, "de um pecado praticado com ele próprio".
Como isso fere o preceito católico, pelo direito canônico ele teria incorrido em infração punida com pena de excomunhão automática — justamente por envolver um sacramento, o da confissão
Sexo a três e tentativa de suicídio:
Como é praxe em denúncias dentro da religião, o caso tramitou internamente dentro da ordem do denunciado, a Companhia de Jesus. Que preparou um dossiê e remeteu ao Vaticano em maio de 2019.
Em junho daquele ano, com anuência da cúpula da Igreja, o padre Johan Verschueren impôs restrições a Rupnik. A ordem religiosa não informa quais foram, mas conforme a reportagem apurou, teria sido um enquadramento, perdoando-o mas solicitando que ele adotasse um estilo de vida mais reservado, evitando holofotes.
Em paralelo, o Dicastério para a Doutrina da Fé determinou que a Companhia de Jesus instaurasse um processo administrativo.
Em janeiro de 2020, houve o veredicto: por unanimidade, todos entenderam que a ação de Rupnik realmente havia sido errônea, por ter absolvido, durante o sacramento da confissão, uma pessoa cúmplice de um ato pecaminoso.
Em maio do mesmo ano, a Doutrina da Fé emitiu um decreto de excomunhão de Rupnik, revogado no mesmo mês pelo mesmo órgão. É o que costuma se chamar, nos corredores da Igreja, de "pena medicinal". Um corretivo.
O Padre Rupnik poderia seguir sua vida, mas recebera o alerta para que não cometesse mais outros desvios de conduta.
Em junho de 2021, contudo, o Vaticano procurou novamente a Companhia de Jesus com novas denúncias quanto ao comportamento de Rupnik — todas envolvendo casos antigos. A investigação foi reaberta.
O teor das denúncias era de que o padre Rupnik teria abusado sexualmente de pelo menos nove freiras da Comunidade Loyola, um convento fundado por ele no início dos anos 1990 em Ljubljana, na capital da Eslovênia, e onde ele atuou como capelão.
De acordo com a imprensa eslovena, uma das religiosas chegou a tentar se suicidar depois dos abusos.
Jornais da Itália publicaram ainda um depoimento de uma freira italiana que relatou ter sido coagida a participar de sexo a três com o padre, "em alusão à Santíssima Trindade".
Proibições impostas ao padre:
Em 14 de dezembro do ano passado, uma semana depois de os escândalos se tornarem públicos, o padre venezuelano Arturo Sosa Abascal, superior-geral dos jesuítas, fez um pronunciamento em Roma.
"Manter em vigor as medidas restritivas do ministério do padre Rupnik é um dos elementos de um processo complexo que, sabemos, leva tempo e para o qual não existem receitas pré-determinadas", afirmou ele. "Faz parte do aprendizado que a gente vai fazendo, tentando não errar."
As restrições até então impostas a Rupnik foram a proibição de exercer o sacramento da confissão, a direção espiritual e o acompanhamento de atividades espirituais. O religioso também ficou proibido de se envolver em atividades públicas sem a permissão de seu superior.
Uma das fontes ligadas ao Vaticano ouvidas pela reportagem disse que o fato de o caso de Rupnik ter se tornado público pode ter feito com que a Doutrina da Fé cobrasse mais empenho dos jesuítas na investigação.
A Companhia de Jesus passou a divulgar um e-mail para o recebimento de denúncias de abusos: teamreferente.dir@gmail.com.
Com o surgimento de novas denúncias, os jesuítas publicaram uma declaração no dia 21 de fevereiro. No documento, as restrições ao padre foram enfatizadas e, a elas, somaram-se a proibição de manifestações por meio de obras de arte - o que, em tese, inviabiliza a continuidade de trabalhos como o de Aparecida.
"Perante este processo interno, e a título cautelar, ficam reforçadas as regras restritivas contra ele, proibindo-o obedientemente de qualquer exercício artístico público, especialmente em estruturas religiosas (como igrejas, instituições, oratórios e capelas, casas de retiro ou de espiritualidade)", pontuou.
"Portanto, essas restrições se somam às já existentes (proibição de qualquer atividade ministerial e sacramental pública, proibição de comunicação pública, proibição de sair da Região de Lazio)", o texto acrescenta.
O comunicado salientou ainda que o sacerdote foi convidado a prestar esclarecimentos "mas não o fez".
Sobre as supostas vítimas, o documento avaliou que como "muitas dessas pessoas não se conhecem e os fatos narrados dizem respeito a diferentes períodos", pode-se entender que "o grau de credibilidade do que é relatado parece ser muito alto".
O relatório diz que há fatos oriundos da Comunidade Loyola, na Eslovênia, "pessoas solteiras que se declaram abusadas na consciência, assediadas espiritual, psicológica ou sexualmente durante experiências de relacionamento pessoal com o padre Rupnik" e ainda integrantes do Centro Aletti.
Todos os casos teriam ocorrido entre o início dos anos 1980 e 2018.
Segundo o documento, a equipe analisou as implicações tanto quanto ao direito civil quanto ao direito canônico. E o entendimento atual é de que "a natureza das denúncias tende a excluir a relevância criminal do comportamento do padre Rupnik perante as autoridades judiciais italianas".
"No entanto, a relevância destes do ponto de vista canônico e sobre sua vida e sua responsabilidade religiosa e sacerdotal é bem diferente", ressaltou.
Não há nada tramitando juridicamente contra ele nem na Eslovênia nem na Itália.
Pelo direito italiano, casos de abuso sexual envolvendo adultos prescrevem em 12 meses - como as denúncias são todas anteriores a 2018, estão tecnicamente prescritas, e este foi o entendimento dos que elaboraram o dossiê na Companhia de Jesus.